Por Marina Amaral (apublica.org)
Depois de uma semana carregada de troca de acusações entre os próprios jornalistas, que transformaram críticas em ofensas nas redes sociais, a notícia de que o STF decidiu que a imprensa pode ser responsável por falas de seus entrevistados deixou gregos e troianos apreensivos.
Acredito que a maioria dos brasileiros – e de jornalistas – endossa a tese do ministro Alexandre de Moraes, aprovada pelo tribunal, de que a liberdade de imprensa não é um valor absoluto, tem de ser exercida “com responsabilidade”.
Mas o ministro defende também, embora não admita censura prévia, que é possível retirar conteúdo do ar e responsabilizar a publicação por “informações comprovadamente injuriosas, difamantes, caluniosas, mentirosas”.
Ok. Mas, se as ações contra jornalistas e publicações já são corriqueiras – quando não se configuram em verdadeiro assédio judicial –, por que então uma decisão que restringe ainda mais a liberdade de imprensa?
O caso em julgamento no plenário do STF era a publicação de uma entrevista em 1995 com imputações falsas de terrorismo feitas por um entrevistado a um militante de esquerda durante a ditadura, que morreu antes de o processo ser concluído. A decisão foi pela condenação do jornal que divulgou a entrevista, o Diário de Pernambuco.
Uma decisão que parece adequada nesse caso, até porque o entrevistado era envolvido com a repressão, inimigo dos militantes contra a ditadura, e, portanto, longe de ser fonte confiável e isenta para uma acusação desse quilate – publicada e não investigada.
A questão é: como a tese aprovada é de repercussão geral, os juízes de primeira e segunda instância vão julgar toda a imprensa e todas as reportagens e entrevistas com base na tese do STF, que peca, também, por não trazer critérios suficientemente claros.
A partir de agora, todos os veículos podem ser punidos pelo que dizem seus entrevistados se: “i) à época da divulgação, havia indícios concretos da falsidade da imputação; ii) se o veículo deixou de observar o dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos e na divulgação da existência de tais indícios” (os negritos são meus).
A imprensa reagiu. “STF decide por liberdade de imprensa vigiada”, tascou o jornal condenado em sua manchete de ontem. A Associação Nacional dos Jornais (patronal), mais discreta, disse que a aprovação da tese é um “avanço”, mas fez ressalvas em nota publicada na quarta-feira. “A modulação dos votos reforça a natural responsabilidade dos veículos com o que divulgam, mas ainda pairam dúvidas sobre como podem vir a ser interpretados juridicamente os citados ‘indícios concretos de falsidade’, e a extensão do chamado ‘dever de cuidado’.”
Para além da conhecida falta de autocrítica da imprensa e da arrogância das empresas de mídia, vale a pena prestar atenção nesses pontos, também levantados pelas organizações de jornalistas. Em especial, a possibilidade de ter que retirar entrevistas do ar antes mesmo do final do julgamento – o que pode ser visto, sim, como censura – e a subjetividade dos critérios estabelecidos: afinal, quem vai determinar, por exemplo, o que são “indícios concretos de falsidade” ou se o veículo deixou de observar o “dever de cuidado”? E como fica o contraponto ao que diz o entrevistado no caso de entrevistas ao vivo?
Indo um pouco mais além do que disseram as entidades de jornalismo: e as denúncias de mulheres estupradas, comunidades atacadas, trabalhadores que relatam atos ilícitos de empresas? Terão que provar o que dizem, o que inviabilizaria muitas denúncias, às vezes sem outras testemunhas? A imprensa não pode ser obrigada a seguir o rito dos inquéritos policiais e processos judiciais. Isso é com os operadores da Justiça.
Claro que é obrigatório ouvir o outro lado e investigar ao máximo e o mais profundamente possível, além de publicar todas as informações apuradas. Mas quem vai avaliar se o trabalho jornalístico foi o suficiente ou se cumpriu “o dever de cuidado”? O juiz?
Ontem mesmo a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) anunciaram que vão enviar um informe endereçado ao relator especial para a liberdade de expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (vinculada à Organização dos Estados Americanos, OEA) sobre a intromissão do STF nos limites da liberdade da imprensa no país.
Paralelamente a isso, porém, jornalistas e sociedade têm que se entender sobre a importância da liberdade de imprensa para a democracia, unidos na exigência pela qualidade da informação e pela necessidade de o jornalismo ter o interesse público como o seu único norte.
Não cabe ao STF aprovar tese de repercussão geral que restringe a priori a liberdade de imprensa e vulnerabiliza o jornalismo, que passa a se sujeitar a interpretações de magistrados de instâncias inferiores. Com o agravante de que juízes locais frequentemente estão envolvidos nos conflitos retratados nas reportagens, são corporativistas quando as denúncias atingem membros do Judiciário, além de tenderem a beneficiar homens brancos, poderosos ou abastados. O recente caso da condenação da repórter Schirley Alves está aí para comprovar os abusos da Justiça.
Que os crimes reais sejam punidos de forma imparcial, analisados caso a caso, com os ministros do STF cumprindo o papel de juízes e de guardiões da democracia e da Constituição, que entroniza a liberdade de imprensa. Afinal, como sabemos, quer na Justiça, quer na imprensa, o diabo mora nos detalhes.