"Essa dança, levantar essa bandeira, é rasgar um grito sufocado pela vida quase inteira", diz Gil Cortez.
O baile de formatura, uma das festas tradicionais mais esperadas por acadêmicos, é a coroação de anos de estudo com direito a um brinde especial na presença de parentes e amigos que certamente acompanharam e auxiliaram na grande conquista. Em Imperatriz, o baile da última turma de direito da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) também ficou marcado pela irreverência com a performance do bacharel Gil Cortez, de 25 anos, que prendeu olhares e arrancou aplausos ao dançar um medley de Beyoncé, arrematado com Pablo Vittar. Gil ainda levantou a bandeira LGBTQIA+.
Se cresci tendo que performar o papel que me impuseram, hoje, adulto e mais firme em mim mesmo, deixei bem claro que aquela apresentação sim é a única e verdadeira performance que vou fazer daqui em diante. Gil Cortez, bacharel em direito
O vídeo compartilhado em suas redes sociais tem sido cada vez mais assistido e comentado, com mensagens de apoio, mas que falam principalmente de representatividade. Um sonho realizado por Gil, que até pouquíssimos anos, pra dançar, tinha que se trancar no banheiro ou aproveitar quando não tinha ninguém em casa.
“Pra mim aquela apresentação representou a concretização de um dos meus maiores sonhos. Eu praticamente desejava mais aqueles cinco minutos do que o diploma, não tem como falar da minha expressão enquanto indivíduo e não passar pela dança. Lembro de ainda ser criança quando fui aprender a dançar forró e ouvi que eu tinha que ser mais ‘duro’ porque tava me mexendo feito a mulher. Cresci me perguntando se um dia iria conseguir estar em qualquer ambiente que fosse, dançando como eu sabia ser capaz. Eu já sentia essa aptidão, talento, colocando pra fora essa energia que sempre esteve em mim, e, sinceramente, minha conclusão era de que isso nunca seria possível, tamanha repressão que a vente vive”, afirmou Gil se referindo à forma como muitos gays dançam e por isso são hostilizados.
Gil Cortez ingressou na faculdade aos 19 anos e antes de receber o diploma do curso de direito obteve sucesso no Exame da Ordem e hoje é advogado. Uma trajetória marcada por luta e também por repressão por ele ser gay.
“Ainda na puberdade desenvolvi transtornos psiquiátricos com os quais lido até hoje, porque em tudo eu era corrigido. Na minha fala, nos meus gestos e maneirismos, no jeito de andar, em absolutamente tudo! Com isso veio também o sentimento de obrigação em me destacar intelectualmente e me desenvolver o máximo possível, pra que entendessem que ‘apesar’, entre muitas aspas, de ‘parecer’ ser gay, eu poderia ser bom”, relatou.
O auge da performance de Gil no baile veio no momento em que ele levantou a bandeira LGBTQIA+, mas o advogado já vinha militando e aproveitando também o espaço acadêmico para alertar que a homotransfobia é crime.
“Posso dizer que tô ainda mais feliz com o quanto aquele momento tocou nas pessoas, fez com que minha comunidade LGBTQIA+ de alguma forma se sentisse espelhada. Foi uma enxurrada de comentários lindos, seja nas redes sociais ou pessoalmente, pelos lugares que fui em seguida, e pra mim esse é o grande sentido da coisa, muito mais que me mostrar e aparecer. No meu trabalho de conclusão de curso falei sobre a criminalização da homotransfobia pela decisão do STF em 2019, e na defesa da monografia os professores foram muito sensíveis e acolhedores, apesar das farpas que encontrei no percurso acadêmico, como encontrei e vou encontrar em todos os lugares, por ser a homofobia um problema profundamente enraizado e estruturado em todas as esferas sociais. Foi estudando mais a fundo a origem histórica dessa discriminação e abrindo os olhos pra como ela se manifesta aqui e agora, diante de mim, que decidi dedicar a minha vida a mostrar pras pessoas o quanto a homotransfobia é absolutamente errada, e qualquer forma de pensamento que a alimente ou impulsione é igualmente abominável”, reforçou Gil.
O grito de Gil Cortez, sufocado pela vida inteira, ainda ecoa após a apresentação no baile e a cada vez que o vídeo toca o coração de alguém com um sentimento de respeito à nossa diversidade e à liberdade de ser quem somos.
“Estar ali diante de tantos conhecidos e amigos, da minha família em parte ainda tão conservadora, e mais tarde nas redes sociais pra quem quiser ver, talvez seja o maior símbolo de vitória pra mim até hoje. Mais significativo que ter passado na faculdade, na prova da ordem, ou qualquer outra conquista, porque essa, em específico, celebra do sentimento mais íntimo à flor da pele, quem eu sou, e meu direito de ser. Se cresci tendo que performar o papel que me impuseram, hoje, adulto e mais firme em mim mesmo, deixei bem claro que aquela apresentação sim é a única e verdadeira performance que vou fazer daqui em diante”, finalizou.
Tátina Viana - Jornal "O Estado do Maranhão"