‘Polícia’ municipal ao arrepio da Constituição está no Sistema de Segurança
Politica
Publicado em 22/10/2024

O Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu há pouco mais de um ano que as guardas municipais integram o Sistema de Segurança Pública (Susp)

Publlicada por "Estadão"

Como não poderia deixar de ser, aquele erro fundamental do STF começa a se refletir em decisões de outras instâncias judiciais

Na prática, isso as revestiu de um poder que, à luz da Constituição, é próprio das polícias. À época, sublinhamos neste espaço que essa decisão, proferida nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 995, foi um grave erro do STF, cujos impactos negativos para o arranjo federativo e para a própria segurança pública não são triviais.

 

Tudo indica que, antes do Legislativo, o Judiciário reconhecerá com frequência cada vez maior um “poder de polícia” que as guardas municipais, definitivamente, não têm. E isso não apenas não diminuirá a sensação de insegurança que hoje já atormenta a maioria dos brasileiros que vivem nas grandes cidades, como ainda poderá criar novos problemas.

 

É fácil vislumbrar, por exemplo, conflitos de competência ou casos de abuso de poder por guardas municipais que se veem como “policiais” e se sentem respaldados tanto pelo STF como por prefeitos para agir como tais, não raro armados.

 

No dia 15 de outubro, a 6.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou dois habeas corpus (HCs) a réus condenados por tráfico de drogas em ações penais que tiveram como fundamento probatório flagrantes decorrentes de patrulhamento realizado por guardas municipais, que apreenderam os entorpecentes.

 

A jurisprudência do STJ era sólida no sentido diametralmente oposto, ou seja, de invalidar esse tipo de ação. Até o julgamento da ADPF 995 pelo STF, era pacífico no STJ o entendimento de que guardas municipais não têm poder para realizar atividades de patrulhamento ostensivo, como abordagens indistintas, revistas pessoais e apreensões, pois não é essa, afinal, a sua vocação, mas sim a manutenção da ordem pública e a proteção do patrimônio público. Como é sabido, o patrulhamento ostensivo cabe às Polícias Militares.

 

Tão controvertida foi essa guinada da jurisprudência do STJ que o placar de julgamento dos dois HCs foi o mesmo: 3 a 2. E aqui vale destacar a manifestação do ministro Rogerio Schietti, voto vencido. Classificando a limitação das guardas municipais às suas atribuições originárias como uma “batalha praticamente perdida”, Schietti alertou que, “pelo visto, iremos, com o tempo, transformar guardas municipais em policiais. E, com isso, iremos criar mais dificuldades do que temos”. É prudente levar o alerta a sério.

 

Recorde-se que o presidente Lula da Silva, por sua vez, também contribuiu para que essa confusão de papéis e responsabilidades fosse instalada no País ao assinar um decreto, no fim de 2023, que regulamentou trechos do Estatuto Geral das Guardas Municipais. Entre outras medidas, ficou estabelecido que guardas municipais podem efetuar prisões em flagrante, o que de resto é uma obviedade que autoriza a inferência de que o petista pretendeu apenas acenar para um segmento do serviço público notoriamente alinhado a seu antecessor.

 

Eis uma sutileza que deve ser observada sob pena de, daqui a pouco, haver mais de 5,5 mil “forças policiais municipais” no País. O art. 301 do Código de Processo Penal diz que “qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”. Guardas municipais, portanto, já estão autorizados por lei a prender indivíduos em flagrante delito. No entanto, o erro do STF ao incluir as corporações municipais no Susp foi equiparar o status jurídico de todos os integrantes do sistema, o que não tem cabimento.

 

Guarda municipal, como dissemos, não é polícia. Ao contrário desta, a guarda municipal, em geral, responde apenas ao prefeito e à sua corregedoria. A punição de eventuais abusos de seus agentes durante ações de competência primordial das polícias pode ser sacrificada no altar do corporativismo, o que é inaceitável num Estado de Direito que se preze.

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